quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O Sacramento da Penitência

Alessandro Lima

A Penitência só se faz necessária para aqueles que, após o Batismo, tiverem contraído algum pecado mortal; não podendo escapar à eterna condenação, se não expiarem devidamente os pecados cometidos.

Se em todos os regenerados houvesse tal gratidão para com Deus que conservassem constantemente a justiça recebida no batismo por benefício e graça sua, não seria necessário outro sacramento instituído para remissão dos pecados, diferente deste [do batismo]. Mas como “Deus, rico em misericórdia” (cf. Ef 2,4) “conheceu a fragilidade de nossa origem” (Sl 103,14), quis também conceder um remédio vivificante aos que se entregassem de novo à escravidão do pecado e ao poder do demônio, a saber: o sacramento da penitência, pelo qual se aplica o benefício da morte de Cristo aos que caem depois do Batismo. (Concílio de Trento XIV, cap 1 sobre o sacramento dapenitência. Denzinger 1668).

Matéria e forma do Sacramento da Penitência

Conforme definido pelo Concílio de Trento, há uma quase-matéria constituída pelos atos do penitente, a saber: contrição, acusação, e satisfação. Estes atos chamam-se partes da Penitência, porque da parte do penitente são necessários por instituição divina, para que haja integridade do Sacramento, e perfeita remissão dos pecados. Chama-se a estes atos de quasematéria, não por que não tenham o caráter de verdadeira matéria, mas porque não são matéria de aplicação exterior, como a água no Batismo e o crisma na Confirmação.

Os atos do penitente são como que matéria deste sacramento, a saber: a contrição, a confissão e a satisfação. Estes mesmos atos são requeridos por instituição divina no penitente para a integridade do sacramento e para a remissão plena e perfeita dos pecados e, por este motivo, se chamam partes da penitência. (Conc. Trento XIV, cap 3. Denzinger 1673).

Se alguém negar que para a inteira e perfeita remissão dos pecados se requerem do penitente três atos como matéria do sacramento da penitência, a saber: contrição, confissão e satisfação, que são chamadas as três partes da penitência; ou se disser que são somente duas as partes da penitência, isto é: os terrores que padece a consciência ao reconhecer seus pecados e a fé no Evangelho ou na absolvição, pela qual crê que os pecados lhe são perdoados por Cristo: seja anátema. (Conc. Trento XIV, IV. Denzinger 1704).

Sobre a contrição observemos a catequese do Concílio de Trento (Sessão XIV, cap 4):

A contrição, que tem o primeiro lugar entre os mencionados atos do penitente, é uma dor da alma e detestação do pecado cometido, com o propósito de não tornar a pecar... Declara, pois o santo Sínodo que esta contrição encerra não só a cessação do pecado e o propósito e início de uma nova vida, mas também o ódio da vida passada, conforme as palavras: “Lançai longe de vós todas as vossas maldades em que prevaricastes e fazei-vos um coração novo e um espírito novo” [Ez 18,31] . (Denzinger 1676).

Ensina ainda que, embora algumas vezes suceda que esta contrição seja perfeita em virtude da caridade e reconcilie com Deus antes que seja realmente recebido este santo sacramento, contudo não se deve esta reconciliação à contrição somente, independente do desejo de receber o sacramento, que aliás está contido nela. (Denzinger 1677).

Sobre a confissão, catequese do Concílio de Trento (Sessão XIV, cap 5):

Em conseqüência da instituição do sacramento da penitência, que já foi explicada, a Igreja toda sempre entendeu que foi também instituída pelo Senhor a confissão integral dos pecados [cf. Tg 5,16; 1 Jo 1,9; Lc 5,14; 17,14]. Esta confissão é necessária por direito divino a todos os que, depois do batismo caem, porque nosso Senhor Jesus Cristo, antes de sua ascenção aos céus, deixou os sacerdotes como vigários seus [cf. Mt 16,19; 18,18], como presidentes e juízes a quem seriam confiados todos os pecados mortais em que os fiéis cristãos houverem caído, para que em virtude do poder das chaves de perdoar ou reter os pecados, pronunciem a sentença... Daí segue que os penitentes devem dizer e declarar na confissão todos os pecados mortais de que, depois de diligente exame de consciência, se sentirem culpados, ainda que sejam os mais ocultos. (Denzinger 1679-80).

Sobre a satisfação, catequese do Concílio de Trento (Sessão XIV, cap 8):

Enfim, quanto à satisfação, de um lado, como todas as demais partes da penitência, foi ela em todo tempo recomendada ao povo cristão pelos Santos Padres, por outro lado, nesta nossa idade, sob o pretexto de piedade, é fortemente impugnada por aqueles que têm aparência de piedade, mas lhe negaram a força [cf. 2Tm 3,5]. Por isso, o santo Sínodo declara ser totalmente falso e estranho à Palavra de Deus afirmar que o Senhor nunca perdoa a culpa, sem que também perdoe toda pena. Pois, para não falar da tradição divina, encontram-se na Sagrada Escritura claros e conhecidos exemplos [cf. Gn 3,16; Num 12,14; 20,11; 2Rs 12,13]. (Denzinger 1689).

Condiz também com a divina clemência que os pecados não nos sejam perdoados sem nenhuma satisfação, a fim de que, por julgar leves os pecados não caiamos em maiores culpas quando se apresenta a ocasião, mostrando-nos injuriosos e ultrajantes ao Espírito Santo [cf. Hb 10,29], entesourando assim ira para o dia da ira [cf. Rm 2,5; Tg 5,3]. (Denzinger 1690).

A forma do Sacramento é a seguinte: “Eu te absolvo... em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.

Ministro do Sacramento da Penitência

As leis da Igreja mostram que o ministro de per si do Sacramento é Bispo. Porém, o sacerdote também pode ministrá-lo, enquanto possui jurisdição ordinária ou delegada para absolver; pois quem deve desempenhar tal ministério deve ter não só poder de ordem, mas também o poder de jurisdição.

[...] O Bispo, chefe visível da Igreja Particular, é, portanto, considerado, com plena razão, desde os tempos primitivos, aquele que principalmente detém o poder e o ministério da reconciliação: ele é o moderador da disciplina penitencial. Os presbíteros seus colaboradores, o exercem na medida em que receberam o múnus, que de seu Bispo (ou de um superior religioso), que do Papa, por meio do direito da Igreja. (CIC 1462).

Alguns pecados particularmente graves são passíveis de excomunhão, a pena eclesiástica mais severa, que impede a recepção dos sacramentos e o exercício de certos atos eclesiais. Neste caso, a absolvição não pode ser dada, segundo o direito da Igreja, a não ser pelo Papa, pelo Bispo local ou por presbíteros autorizados por eles. Em caso de perigo de morte, qualquer sacerdote, mesmo privado da faculdade de ouvir confissões, pode absolver qualquer pecado e de qualquer excomunhão (CIC 1463).

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Fé, obras e certeza da salvação

Rafael Vitola Brodbeck
Alegam os protestantes que a fé é uma apropriação pessoal dos méritos de Cristo, confiando na Redenção por Ele operada, mais do que um ato do intelecto movido pela vontade iluminada pela graça em adesão a uma doutrina. Essa apropriação, claro, notadamente na tradição calvinista (e também na luterana) é ação da graça. Ainda assim, a graça moveria a alma a esse ato de apropriação, que se enquadra melhor no conceito de esperança do que no de fé, e não uma ação intelectual (igualmente produto da graça) de aceitação da verdade revelada, como crêem os católicos.

Pregam, outrossim, que conseqüência obrigatória da fé (e como que um sinal de que é uma fé verdadeira, ou salvífica, como dizem) é ter certeza da própria salvação. Note-se: não a certeza de que Cristo salva ou de que pode me salvar de fato (pois isto é o conteúdo da fé em sentido católico e, em decorrência dela, da esperança), mas a certeza de que o crente está salvo: eu, que creio, estou salvo - é o ensino protestante.

Ora, não há como ter certeza da salvação. Vê-se, pois, que, apesar de elementos de verdade - que são sementes católicas no meio do erro -, o calvinismo é um sistema que gira em torno de seus próprios pressupostos e, para justificar algumas doutrinas, cria outras. Uma delas é a tal certeza da salvação, que não encontra eco em nenhum dos Padres da Igreja, a quem tanto invocam para, de modo distorcido, alegar autoridade para seu movimento de separação da Sé de Pedro.

Não temos certeza da salvação (porque nem presumimos de nossos próprios méritos como fariam os pelagianos, nem presumimos da graça de Deus como se não fôssemos livres para resistir a ela). Tampouco, caímos em desespero. O que temos é a virtude teologal da esperança. Esperamos que Deus nos dê a graça e que corresponderemos a ela.

A tese da certeza da salvação, aliás, é fruto de um equivocado entendimento da virtude da esperança. Ela como que substitui, na teologia protestante, a noção de esperança. E isso por um motivo muito simples: para Lutero, a fé é uma confiança no sacrifício de Cristo, e não uma adesão do intelecto, movido pela vontade e iluminado pela graça, à Revelação de Deus em Cristo. Lutero, pois, confunde a fé com a esperança. Mais, chama de fé aquilo que, propriamente, é mais próprio da esperança. A esperança, então, fica vazia, e é preciso procurar um outro conteúdo para ela. Acha-se a "certeza da salvação".

Não, não tenho certeza da salvação. Não porque duvide da graça, mas porque sei que sou fraco e posso, a qualquer momento, cair da graça por decisão pessoal. Tampouco me desespero, achando que Deus não perdoará ou salvará, ou que inevitavelemente irei cair. Tenho, isso sim, duas atitudes, na verdade duas virtudes (todos temos pelo Batismo): a fé e a esperança (claro, e a caridade). Pela fé, creio firmemente que Cristo morreu por mim, que Seu sacrifício foi suficiente para a minha salvação, que Ele me dá a Sua graça para querer a salvação e que, se perseverar, terei a justificação. Isso a fé. Pela esperança, outrossim, confio que Deus não me abandonará e me dará a graça final. Não tenho certeza, apenas confio, espero (no sentido da virtude de esperar, não o esperar no entendimento popular). Se eu me mantiver fiel, minha confiança se transformará, no céu, em realidade. E por isso é que São Paulo nos diz que a esperança cessará, como a fé, permanecendo apenas a caridade: no céu não há lugar para esperança, pois só se espera o que não se tem. Se a esperança fosse certeza da salvação, como sustentam os protestantes, então, no céu ela continuaria (porque a certeza da salvação haverá no céu, aliás, é só ali que haverá), e a Bíblia estaria errada.

Temos fé na salvação no sentido objetivo (Cristo nos salvou a todos, morrendo na Cruz), e esperança na salvação no sentido subjetivo (aproprio-me pela fé e pelos sacramentos dessa salvação).

"Por ele é que tivemos acesso a essa graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança de possuir um dia a glória de Deus." (Rm 5,2)

A verdadeira fé é necessária para a salvação, evidentemente. "Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado." (Mc 16,16) "Ora, sem fé é impossível agradar a Deus, pois para se achegar a ele é necessário que se creia primeiro que ele existe e que recompensa os que o procuram." (Hb 11,6)

Todavia, conforme o ensino de São Tiago (cf. Tg 2,14.17.20), a fé sem obras é morta, não é capaz de justificar. "Se invocais como Pai aquele que, sem distinção de pessoas, julga cada um segundo as suas obras, vivei com temor durante o tempo da vossa peregrinação." (I Pe 1,17) Isso porque a justificação, ao contrário do que sustentam os protestantes, não é uma operação automática pela qual Deus, judicialmente, nos declara santos, e sim um processo lento e gradual, em que o Espírito Santo nos torna, de fato santos e justificados. A graça divina não é uma capa a cobrir os nossos pecados, mas uma ação eficaz na alma que a transforma de verdade. Deus não poderia declarar alguém justificado que permanecesse pecador, com a graça apenas cobrindo suas iniqüidades. A justificação forense, jurídica, judicial - tese fundamental dos protestantes - é totalmente contrária ao correto entendimento do Deus que é verdade. O juízo divino é sempre de acordo com a realidade das coisas. Ninguém pode ser declarado justo sem sê-lo realmente, de modo que se o Senhor justifica um pecador é necessário que ele tenha sido, pelo mesmo Senhor, já justificado. A justificação não é um cobrir com a graça os pecados, mas um perdoar de fato os pecados - pela graça, claro. Deus não só finge, por amor, que o homem é justo, mas torna-o justo, apaga os pecados. Se assim não fosse, Deus estaria declarando justo quem não é, quem continua ímpio. O homem não pode ser, como erroneamente ensinava Lutero, simul justus et peccator, dado que na Escritura não se encontra um trecho sequer em que o ser humano justificado é chamado pecador. Deus não dá uma aparência de justificação, uma justificação meramente judiciária, mas justifica de verdade: "O Justo, meu Servo, justificará muitos homens, e tomará sobre si suas iniqüidades." (Is 53,11) O Senhor não quis, em Cristo, que fôssemos somente considerados justos, mas nos outorgou a graça, removidos os pecados pela imputação dos méritos de Cristo, "para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus." (II Co 5,21) Note-se: nos tornamos, pela graça, justiça de Deus, não somente somos considerados como justiça. E tornar-se implica uma realidade e um processo. Processo esse que se depreende do ensino de São Paulo: "trabalhai na vossa salvação com temor e tremor." (Fl 2,12) Se a justificação fosse um ato instantâneo e não um processo, não precisaria ser trabalhada, muito menos com temor e tremor. Também é o ensino de São João: "Conserva o que tens, para que ninguém tome a tua coroa." (Ap 3,11) Ora, ninguém seria exortado a conservar o que tem se fosse impossível perdê-lo (conseqüência lógica da justificação automática; "uma vez salvos, salvos para sempre", é o mote calvinista).

Como se trata de um processo, não podemos ter certeza da salvação, dado que o processo só termina com o último suspiro do homem sobre a terra. O homem, em um momento está em graça, e noutro pode cair. "É pela incredulidade que foram cortados, ao passo que tu é pela fé que estás firme. Não te ensoberbeças, antes teme. Se Deus não poupou os ramos naturais, bem poderá não poupar a ti. Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus: severidade para com aqueles que caíram, bondade para contigo, suposto que permaneças fiel a essa bondade; do contrário, também tu serás cortada." (Rm 11,20b-22) "Portanto, quem pensa estar de pé veja que não caia." (I Co 10,12) Aliás, o crente nem pode ter certeza absoluta de estar em graça. Pode, por sinais objetivos (sua fé, suas obras, sua sinceridade na relação com o Pai), esperar que esteja. "De nada me acusa a consciência; contudo, nem por isso sou justificado. Meu juiz é o Senhor." (I Co 4,4)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O que é inspiração bíblica?

D. Estêvão Bettencourt, OSB
A Bíblia é a Palavra de Deus inspirada. Mas como se dá essa inspiração? Talvez imaginemos um ditado mecânico como a de um chefe à sua datilógrafa. Esta escreve coisas que não entende e que são entendidas apenas pelo chefe e sua equipe. Isso não é a inspiração bíblica. Pois, ela não dispensa certa compreensão do autor humano (o hagiógrafo), nem sua participação na redação do texto sagrado.

A inspiração bíblica também não é revelação de verdades que o autor humano não conheça. Existe sim, o carisma da Revelação, especialmente nos profetas. Mas é diferente da inspiração bíblica. Esta se exercia, por exemplo, quando o hagiógrafo descrevia uma batalha ou outros fatos documentados em fontes históricas, sem receber revelação divina.

Inspiração Bíblica é a iluminação da mente do autor humano para que possa, com os dados de sua cultura religiosa e profana, transmitir uma mensagem fiel ao pensamento de Deus. O Espírito Santo fortalece a vontade e as potências executivas do autor para que realmente o hagiógrafo escreva o que ele percebeu.

Tais livros são todos humanos (Deus em nada dispensa a atividade racional do homem) e divinos (Deus acompanha a redação do homem escritor). A Bíblia é um livro divino-humano. Transmite o pensamento de Deus em roupagem humana. Assemelha-se ao mistério da Encarnação, onde Deus se revestiu de carne humana, pois na Bíblia a Palavra de Deus se revestiu da palavra do homem (judeu, grego, com todas as suas particularidades de expressão).

A finalidade da inspiração bíblica é estritamente religiosa. Não foi escrita para nos ensinar ciências naturais, mas aquilo que ultrapassa a razão humana (o sentido do mundo, do homem, da vida, da morte, etc diante de Deus). Portanto, não há contradição entre a Bíblia e as ciências naturais. Mesmo Gênesis 1-3 não pretende ensinar como nem quando o mundo foi feito.

A Bíblia só é inspirada quando trata de assuntos religiosos? Há páginas na Bíblia não inspiradas?

Toda a Bíblia, em qualquer de suas partes, é inspirada, qualquer que seja a sua temática. Ocorre, porém, que Deus comunica sua mensagem religiosa em linguagem familiar pré-científica, bem entendida no trato quotidiano. Por exemplo, quando falamos em "nascer-do-sol" ou "pôr-do-sol", supomos o sistema geocêntrico (ultrapassado), mas não somos taxados de mentirosos, porque não pretendemos definir assuntos de astronomia. Assim, quando a Bíblia diz que o mundo foi feito em 6 dias, ou que a luz foi feita antes do sol e das estrelas, ela não ensina teorias astronômicas, mas alude ao mundo em linguagem dos hebreus antigos para dizer que o mundo todo é criatura de Deus. Portanto, em assuntos não-religiosos, a Bíblia adapta-se ao modo de falar familiar ou pré-científico dos homens que, devidamente entendido, não é portador de erro.

Também todas as "palavras" da Escritura são inspiradas. Os conceitos dos homens estão sempre ligados às palavras. Quando o Espírito Santo iluminava a mente dos autores sagrados, iluminava também as palavras. É por isto que os próprios autores sagrados fazem questão de realçar de realçar vocábulos da Bíblia: Jo 10,34-35; Hb 8,13; Gl 3,16.

Notemos, porém, que somente as palavras das línguas originais (hebraico, aramaico e grego) foram assim iluminadas. As traduções bíblicas não gozam do carisma da inspiração. Por isso, ao ler a Bíblia, devemos nos certificar de estarmos usando uma tradução fiel e equivalente aos originais.

"Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça." (2Tm 3,16).

Para extrair a mensagem religiosa é absolutamente necessário levar em conta o gênero literário do texto. Por exemplo, "leis" tem seu gênero literário próprio (claro e conciso para que ninguém possa se desculpar), a poesia tem gênero literário oposto ao das leis (metafórico, subjetivo). Uma crônica é diferente de uma carta. Uma carta comercial é diferente de uma carta de família, uma fábula é diferente de um fato histórico.

Na Bíblia há diversos gêneros: histórico; história em estilo popular (Sansão); poesia; parábola; alegoria (Jo 15,1-6); a lei e muitos outros. Cada gênero tem suas regras de interpretação próprias. Não posso entender uma poesia (cheia de imagens) como entendo uma lei (clara e sem imagens). Assim, a criação do mundo em Gn 1 é poesia. Enquanto a narração da Última Ceia é relato histórico. Este devo entender ao pé da letra, enquanto aquele outro não o posso.

Antes de ler um livro da Bíblia é necessário se informar do seu gênero literário, a fim de entender os critérios de redação adotados pelo autor. Tal informação pode ser obtida nas introduções que as edições bíblicas apresentam para cada livro sagrado.

Pergunta-se ainda: se a Bíblia é toda inspirada, como se pode explicar as "contradições" e "erros" que ela contêm? Afinal Deus existe como afirma Jo 1,18 ou não existe como afirma Sl 52(53), 1 ? O sol parou, conforme Js 10,12-14 e Is 38,7s? De Abraão a Jesus houve apenas 42 gerações (Mt 1,17) ? Afinal o maná, era insípido e pouco atraente (Nm 11,4-9) ou saboroso (Sb 16,20s) ?

Responde-se: A Bíblia é isenta de erros em tudo aquilo que o hagiógrafo como tal afirma e no sentido em que o hagiógrafo entendeu.

Portanto, em outras palavras, para obtermos a mensagem isenta de erros devemos verificar se é algo afirmado pelo próprio hagiógrafo, ou se ele afirmou em nome de outrem e qual o gênero que ele adotou.

Voltando aos casos apontados: Em Jo 1,18 o hagiógrafo, como tal, é quem afirma que Jesus revelou Deus Pai. Mas no salmo 52(53), 1, o hagiógrafo apenas afirma (com plena veracidade) que o insensato nega a existência de Deus. O insensato erra ao negar, o salmista apenas verifica o fato. A "parada do sol" está dentro de um contexto de poesia lírica, onde "estacionamento do sol" quer dizer "escurecimento da atmosfera, clima de tempestade de granizo". Josué pediu a Deus essa tempestade, a qual é relatada em Js 10,11. Os demais casos se enquadram no uso do gênero literário do midraxe.

Midraxe é uma narração de fundo histórico, ornamentada pelo autor sagrado para servir à instrução teológica. O autor conta o fato de modo a destacar o valor ou o significado religioso deste fato. Sua intenção não é a de um cronista, mas a de um catequista ou teólogo. O caso do maná: em Nm há uma narração de cronista, enquanto em Sb é apresentado o sentido teológico do maná num midraxe. O maná era saboroso não por seu paladar, mas por ser o penhor da entrada do povo na Terra Prometida. As 42 gerações relatadas entre Abraão e Jesus visa destacar a simbologia do número 42 (3 x 14): em Cristo se cumpre todas as promessas feitas a Israel, é o Consumador da obra de Davi.

Ao meditarmos a Bíblia, oremos como Santo Agostinho: "Faze-me ouvir e descobrir como no começo criaste o céu e a terra. Assim escreveu Moisés, para depois ir embora, sair deste mundo. Agora não posso interrogá-lo. Se pudesse, eu lhe imploraria para que me explicasse estas palavras. Mas não posso interrogá-lo. Por isso dirijo-me a Ti, Verdade, Deus meu, de que estava ele possuído quando disse coisas verdadeiras. E Tu, que concedeste a teu servo enunciar estas coisas verdadeiras, concede também a mim compreendê-las." (Confissões XI 3,5)

"Nenhuma profecia da Escritura é de interpretação particular. Nenhuma foi proferida pela vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus" (2Pd 1,20-21)

Fonte: Apostila do Mater Ecclesiae: Curso Bíblico.